Até bem pouco tempo atrás –duas ou três gerações– o filho único sofria uma espécie de estigma social, que praticamente conduzia toda a sua vida. Esperava-se que a criança sem irmãos tivesse de ser tímida, reservada, introvertida e, na pior das hipóteses, egoísta e mimada. "Era como se houvesse algum determinismo que marcasse a vida desse ‘ser diferente’ para sempre”, diz o pediatra Moises Chencinski. "As bases culturais e sociais se transformaram, o mundo evoluiu e isso trouxe mudanças de parâmetros. O que há séculos era considerado ruim, de repente se transformou em exemplo", diz, referindo-se ao fato de que, hoje, os filhos únicos adquiriram qualidades como extroversão e autossuficiência.
A polêmica e as conceituações vêm de longa data: em 1896, com a publicação de seu livro "Of Peculiar and Exceptional Children", o psicólogo norte-americano Granville Stanley Hall influenciou gerações de pesquisadores com suas ideias sobre a pouca sociabilidade e superproteção de quem crescia sem irmãos. "A obra corroborava a ideia de que ser filho único indicava propensão a um determinado tipo de comportamento: fragilidade, timidez, tirania com os familiares, dificuldade de adaptação na sociedade e rebeldia, entre outros", explica Moises Chencinski. A convivência apenas com adultos poderia levar a um amadurecimento intelectual mais precoce, com ideias e vocabulário muito além da idade. Em vez de facilitar, esse avanço dificultaria a adaptação da criança em um grupo de mesma faixa etária, até pela rejeição do próprio círculo.
As mudanças comportamentais trataram de invalidar tais teorias. É bom destacar que, num passado não tão distante, as famílias costumavam ser numerosas e a ocorrência de um só herdeiro não era bem vista e até caracterizada como "problema". "Ser filho único era quase um sinônimo de isolamento”, afirma a psiquiatra Ivete Gianfaldoni Gattás, coordenadora da Unidade de Psiquiatria da Infância e Adolescência (UPIA) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Trabalhos recentes já demonstram uma nova tendência. Um estudo com mais de cem mil pessoas realizado pela universidade de Essex, na Grã-Bretanha, coordenado pela pesquisadora Mas Gundi Knies, revela que filhos únicos são mais felizes do que os que têm irmãos. Entre as principais razões para essa mudança estariam a não necessidade de batalhar pela atenção dos pais e a consequente diminuição da ansiedade, a ausência da pressão de irmãos mais velhos (muitas vezes na forma de "bullying") e o investimento mais intenso em sua educação –com a diminuição dos custos dos estudos, é possível optar por escolas de melhor qualidade e investir em cursos de idiomas, música, artes etc. Tudo isso, evidentemente, torna a criança mais capacitada intelectualmente para encarar o futuro profissional.
As velhas acusações de que filhos únicos são egoístas e mimados estão cada vez mais ultrapassadas. "Como agora mais mães trabalham fora, a atenção dos pais passa a não ser exclusiva do filho e ele já é obrigado, desde cedo, a aprender a dividir”, afirma Moises Chencinski. Além disso, se antes as crianças só encaravam a escola com seis anos de idade, hoje é comum que frequentem creches e berçários muito cedo, com menos de um ano –às vezes, assim que se encerra o período de licença-maternidade da mãe, que vai de quatro a seis meses.
Independência, autonomia e autossuficiência são características exercidas diariamente nas escolinhas. "As crianças passam desde cedo a ter uma rede social mais ampla do que em tempos passados, quando o aprendizado inicial das relações se dava basicamente no ambiente familiar", afirma a psiquiatra Ivete Gianfaldoni Gattás. "Os amigos fazem as vezes dos irmãos de antigamente", completa a especialista da Unifesp, lembrando de uma consequência que acaba ressoando por toda a vida.
Para Miriam Ribeiro de Faria Silveira, diretora do Departamento de Saúde Mental da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP), a convivência precoce com outras crianças modifica o comportamento, por isso observamos menor dificuldade de sociabilização, timidez e introspecção. “Não é garantia total de desenvolvimento, mas os seres humanos costumam aprender por observação e repetição, daí a importância de se conviver com outras crianças. Essa convivência é muito rica e estimula o desenvolvimento neuropsíquico e motor”, diz.
Longe das salas de aula, porém, são as atitudes dos pais que têm o poder de determinar se vai haver espaço para egoísmo, mimo, narcisismo etc. “Os pais de um filho único deverão ficar mais atentos para não dar origem à falsa ilusão de 'eu sou o rei' e 'eu posso tudo', já que no mundo externo à sua casa ele será apenas mais um”, explica Ivete Gattás. Ela afirma que os filhos, sejam eles únicos ou múltiplos, devem ser sempre pensados individualmente, cada um com sua personalidade, preferências, habilidades e dificuldades.
Para o pediatra Moises Chencinski, ser o centro das atenções, receber todos os cuidados e ser o portador de todas as esperanças da família pode ter seu lado bom, se as metas são atingidas, ou ruim, se houver qualquer tipo de percalço que interfira nesse sucesso. “Esse resultado final poderá depender de como os pais encaram essa relação e do tipo de empenho e expectativas que depositam na criança, já que a educação de um filho único pode ser mais complexa ou mais simples do que a de irmãos em uma família mais numerosa.”
Em alguns casos, o excesso de atenção pode gerar mais segurança para essa criança e, em outros, mais cobranças. “Proteção é importante. Suporte é fundamental. Amor, carinho e atenção, indispensáveis. Esse conjunto formará um vínculo adequado. O excesso ou a falta de algum desses ingredientes promoverá desequilíbrio, quer seja em filhos únicos ou não. É importante estar atento aos sinais que toda criança passa, mesmo através do silêncio", diz Moises Chencinski.
Fonte: http://mulher.uol.com.br
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